Saturday, January 26, 2008

O ventríloquo

Certo dia, não consigo precisar a hora ou o local, nem tão pouco a origem ou o destino daquela caminhada, uma caminhada envolvedora por certo duma missão provavelmente a mim incumbida mas da qual não retenho qualquer pormenor, lembro-me sim do pesado cajado que penosamente carregava mas cujo conteúdo me era de todo desconhecido, o que também me parece não ser relevante para o episódio que aqui relato...mas certo dia, dizia eu, seguia uma longa recta de estrada. Era uma estrada de lajes soldadas a trevos e outras ervas rasteiras que, diga-se, muito abundavam dado serem raras as peregrinações locais. As bermas, também elas cobertas de um fresco verde estavam ornamentadas com abetos ordeiramente plantados e que se prolongavam num traçado paralelo até se juntarem naquele infinito chamado horizonte. A dada altura, envolvido pelo canto dos melros e dos rouxinóis, avisto um marco miliário e no qual se encontrava sentado um arlequim, ao seu colo uma bizarra marioneta. A personagem entregava-se a um interessante exercício ventríloquo. O discurso circunscrevia-se a um satírico monólogo. O domínio da arte era tal que em momento algum vislumbrara o mínimo movimento no rosto do rufião. Tinha sim um olhar vago, vidrado, adornado por uma máscara, o que me dificultava qualquer tipo leitura. O pequeno boneco sim, exprimia-se com gestos e voz que dir-se-ia alimentada de hélio, tudo isto recitado num cómico discurso. Toda a sincronia de palavras e movimentos que abençoava a marioneta eram tão só energia, vontade e saber administrado pelo arlequim, pelo menos assim se mo afigurava, e o resultado apresentava uma forma nova, genuína, pura. O monte de trapos era extensão do organismo do saltimbanco, era dificil estabelecer uma fronteira que delimitasse o indivíduo do objecto. Encarei este exercício invulgar como um lúdico passatempo para quebrar a monotonia do campo, para matar o tempo. Assisti deliciado a esta pequena performance teatral. Fora por breves instantes a sua plateia, único membro, diga-se, a não ser que os répteis e insectos que muito abundavam naquele solo ou os pássaros presentes nas ramadas fossem capazes de codificar aquela expressão artística em irracional prazer. E fora uma boa meia hora entregue a cantares de maldizer, a pensamentos populares, ideias revolucionárias, a adágios absurdos, a uma poesia absolutamente nova. Mas entardecia e tivera que seguir o meu rumo, despedi-me do arlequim inclinando a cabeça, e curiosamente a retribuição viera da marioneta. O Arlequim continuara imóvel como uma estátua, inexpressivo como um moribundo, nem um milimétrico contrair de músculo - impressionante. Fizera-me à estrada, meditei acerca daquele surreal momento, e no meio da dissertação ocorrera-me que talvez o boneco tivesse consumido a última réstia de humanidade daquele colorido senhor, tornando-o assim num fantoche sisudo condenado a guardião daquela estrada, ou então, um ganhara autonomia oral profissionalizando-se na arte da oração, enquanto o outro eclipsara-se num penoso e sombrio silêncio restando-lhe a ingrata tarefa de carregar o anão e assim ofertar-lhe o conforto necessário para lançar as farpas aos que por ali passam e não passam . Lá segui a passo a ainda extensa marcha a percorrer. Restava-me agora saber, de onde vinha para onde me dirigia e o que transportava comigo....

Anónimo

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