Sunday, December 23, 2007

Metamorfose

Serpenteava um sinuoso troço de cascalho flanqueado por densa vegetação e serra.
Pelo caminho inquiri as criaturas nativas acerca da fóz do seu destino.
Para meu malogro o idioma dos bichos era-me incompreensível.
Sons angulares e gesticulações frenéticas conjugavam-se numa teatral represenção de códigos absurdos.
Em breve, perdido sob um céu escurecido, acendiam-se as primeiras centelhas de estrelas.
Então, ali, junto a um milenar monolito contemplei o firmamento.
Desenhado pelos astros, destacava-se lá no alto um papagaio, um papagaio igual aos engenhos de pau e papel que anarquicamente delineavam movimentos sem nexo nas praias da minha infância, mas a brisa que se fazia sentir neste momento não desmobilizava o objecto.
Mais tarde revelou-se-me que de facto as estrelas, dada a sua distância,
estariam imunes aos caprichos do vento. Com maior rigor observei que o complexo astral em questão mais não era que coração do pastor Orionte, deitando por terra aquela minha visão.
A dada altura, depois deste devaneio e iluminado pelo luar, tornara-me também eu bicho deste extenso domínio.
Deixara de me preocupar com qualquer paradeiro , encontrara a paz.
Aqui as águas frescas embriagam e a poesia é eterna. Nada me falta.

Celebrei esta libertação aos úivos.

Friday, October 19, 2007

Até mais ver (Village Vanguard, live)

Até mais ver...

Até mais ver, sonâmbulo das vinte e quatro horas

Até mais ver, insolente embriagado. Rum e parcos cêntimos na algibeira

Até mais ver, iluminado pela intermitência de neons, neons que ferem a vista; azuis e rosas fluorescem numa promíscua e subliminar referência ao vício - deslumbrados pelo acolhimento voltámos a ser crianças

Até mais ver, envolvido pelo novoeiro da vila

Até mais ver...

Até mais ver, passador de sonhos ilícitos. Do outro lado da rua, são putas e são chulos e são toda uma fauna a transpirar líbido a saldo

Até mais ver, viajante solitário e gatos com cio

Até mais ver, no trilho de passeios mal iluminado

Até mais ver, e o último eléctrico passa

Até mais ver, e uma bagatela por uma sopa nocturna

Até mais ver, eu fico por esta pensão

Até mais ver, príncipe da zaragata e uma cicatriz no sobreolho

Até mais ver, discípulo de Parker, Monk e Coltrane, e todos os outros mais, subversores da confortavel rotina. Biséis oxidados, caldos de conteúdo nutrituvo duvidoso e bop endiabrado - ferramentas de uma nova doutrina

Até mais ver, e um cadáver a boiar no canal

Até mais ver, no ano de mil e nove centos e oitenta mil. Até lá, salda a tua dívida

Até mais ver, e siluetas nos telhados miram siluetas noutros telhados que miram outras siluetas anónimas, ali, na esquina do pub que está fechado

Até mais ver, vómito, urina e escarro ornamentam um fresco de graffitis no portal daquela unidade fabríl

Até mais ver...

Até mais ver, na insónia, na ingestão descontrolada de fármacos, e a tv ligada num canal em fim de emissão

Até mais ver, no álcool e nos dedos amarelecidos pelos cigarros consumidos uns atrás dos outros, na enxaqueca e no amaldiçoar da má fortuna, na solidão e na amargura das palavras

Até mais ver, no caír da noite, no recolher da cidade, no despertar dos ratos

Até mais ver...até mais ver.

Saturday, June 16, 2007